Eduardo Pragmácio Filho*
“Você é um nomofóbico?”. Essa foi a pergunta de partida de minha fala no Congresso da Academia Brasileira de Direito do Trabalho, em outubro de 2023, na cidade de São Paulo. A pergunta até parece aquelas pegadinhas de programas de humor, quando se perguntam, para pessoas humildes e sem escolaridade, o que elas fariam se soubessem que seus filhos são heterossexuais! Deixando de lado as brincadeiras, o assunto aqui é sério, relevante, o uso dos smartphones no ambiente de trabalho, possuindo impacto na vida profissional e pessoal de todos, e sobretudo impacto na produtividade das empresas.
A “nomofobia” é um neologismo de “no mobile phobia”, o medo de ficar sem o aparelho celular, sem acesso à tecnologia, de não estar conectado, o que pode ser considerado, inclusive, um transtorno psicológico, segundo a OMS – Organização Mundial da Saúde, em razão de a adicção ser considerada uma doença. Assim, essa dependência digital, o medo de ficar desconectado, é algo novo e desperta muita atenção dos estudiosos da área. Mas essa questão médica propriamente, ou psicológica, deixa-se para os profissionais competentes.
O que se pretende abordar, aqui, é o impacto do (ab)uso do smartphone no ambiente de trabalho, saber quais as consequências jurídicas.
Veja-se o que aconteceu no aeroporto de Guarulhos, em outubro de 2023: uma greve, uma paralisação, no setor de cargas do aeroporto, pois os trabalhadores estavam questionando a proibição do uso de celulares no ambiente de trabalho! Essa proibição decorreu em razão do caso de duas brasileiras que foram presas na Europa, e tanto a Receita Federal quanto a concessionária do aeroporto determinaram a proibição do uso de smartphones no setor, evitando trocas de bagagens e garantindo uma segurança maior no manuseio das cargas.
Essa paralisação, no mínimo curiosa, provoca algumas reflexões sobre a possível ascensão de um “direito à conexão”, como um corolário, um contraponto, ao “direito de desconexão”. Notem que o smartphone, definitivamente, leva o trabalho para o espaço da casa e do lazer, por meio da leitura e escrita de e-mails, realização de videoconferências, mensagens eletrônicas, acesso aos arquivos e sistemas nas nuvens etc.
A sociedade hoje é tão conectada, em rede, que o smartphone se configura uma espécie de longa manus, uma extensão do nosso corpo, integrando (mas ainda não incorporando) a máquina ao nosso corpo.
E, agora, em movimento inverso (e de certa forma pendular) o espaço da casa e do lazer invade o trabalho! A classe trabalhadora, ao que parece, clama por um “direito à conexão”, e a retirada ou a mitigação desse direito, como foi o caso de Guarulhos, provoca a insurgência por meio da greve e de outras formas de contestação, como o boicote.
Será que estamos todos mesmo ficando nomofóbicos? Será que é possível (con)viver sem o acesso à rede?
Não se pretende aqui abordar o legítimo interesse e poder do empregador de regular, por meio de norma interna, o uso de celular no ambiente de trabalho. Mas, chama a atenção que o assunto já é cláusula, por exemplo, de convenção coletiva de trabalho do setor de construção civil em São Paulo, ressaltando a faculdade do empregador de disciplinar o uso do smartphone no local e no horário de trabalho.
Notem: a solução, em vez de ser unilateral pelo empregador, passa a ser autorizada, concertada, negociada, por meio de convenção coletiva, tornando, em alguma medida, mais legítima e democrática a medida proibitiva de conexão.
Para além da questão da produtividade, isto é, o tempo do uso celular versus o tempo de efetiva produção, há uma questão primordial no setor da construção civil para tal proibição: evitar acidentes de trabalho, afastando a distração e o ato inseguro. Da mesma forma, lá no aeroporto de Guarulhos, a proibição teve um fundamento de segurança.
Há uma dissertação de excelência, de um médico do trabalho cearense, um estudioso e talentoso pesquisador, Pedro Fernandes Oliveira, a respeito das “repercussões do uso de smartphones na saúde dos professores universitários”. Os professores sabemos o que passamos na pandemia.
O médico chama a atenção, em resumo, para três grandes grupos de repercussões em razão do uso do smartphone na saúde dos professores, o que pode, por simetria, ser levado para toda a classe de trabalhadores:
Primeiro, as consequências “físicas”, o que se revela em questões ergonômicas, posturais, e podem levar a lesões por esforço repetitivo (LER), cervicalgia e problemas de visão, por conta da luminosidade das telas.
Segundo, as consequências “mentais”, sobretudo em relação ao distúrbio do sono, o que pode provocar insônia, e, por sua vez, a insônia pode provocar a sonolência no ambiente de trabalho, o que leva à irritabilidade, à distração, acidentes, baixa produção, burn out, sentimento de culpa etc. Talvez este seja o impacto na saúde mais significativo, pois ele é gatilho para vários outros distúrbios físicos e mentais.
Terceiro, consequências “sociais e familiares”, chamado por ele de “conflito trabalho-família”. Aqui, envolvem-se os membros de uma família, sobretudo o cônjuge, nos aspectos do trabalho, levando até sentimentos do cônjuge de engajamento ou, por outro lado, de ressentimento, com o trabalho, ampliando a esfera de influência laboral na vida pessoal, não só do trabalhador, mas de toda a sua família.
Enfim, somos, em alguma medida, cobaias dessa nova forma de trabalhar, atuar e viver, em que o smartphone é meio de comunicação, interação, conexão, no fluxo de dados e vivência entre os espaços do trabalho e da casa. E, no meio do caminho, o corpo e a mente interagem e reagem a esse movimento.
É necessário um diálogo intenso do direito com a psicologia, com a medicina e com a engenharia, para semear soluções criativas para esses problemas da sociedade em rede e hiperconectada em que vivemos.
* Eduardo Pragmácio Filho é doutor e mestre em direito do trabalho pela PUC-SP, membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho, pesquisador do Getrab/USP e sócio de Furtado Pragmácio Advogados.