Claudia de Lucca Mano*
Em despacho publicado na última segunda, 26, a ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Regina Helena Costa, determinou a realização de uma audiência pública, a ser realizada no próximo mês de abril, com o intuito de ouvir a sociedade, especialistas e interessados na produção de medicamentos e outros subprodutos derivados de cannabis, para fins medicinais, farmacêuticos ou industriais, para embasamento de processo judicial sob sua relatoria.
A ação foi movida em 2020, na Justiça Federal do Paraná, pela empresa DNA Soluções em Biotecnologia contra a União e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e busca autorização para importar sementes de hemp (cânhamo industrial) com a intenção de cultivar plantas com concentração de Tetrahidrocanabinol (THC) inferior a 0,3%. Após decisões desfavoráveis em primeira instância e na apelação, a questão foi levada ao STJ por meio de um recurso especial. O STJ decidiu , então, que o resultado do processo terá caráter vinculante, obrigando todos os juízes a acompanharem o entendimento, conforme art. 947, §3º, do CPC.
O cânhamo industrial, também conhecido como cânave (Cannabis sativa L.), refere-se a diferentes variedades da planta Cannabis sativa, cultivadas principalmente para a obtenção de medicamentos ou fibras utilizadas em diversas aplicações têxteis. O cânhamo pode ser aproveitado na produção de papel, cordas, alimentos veterinários, etc.
No processo judicial, a DNA defende que o cânhamo e suas sementes não deveriam sequer ser considerados como drogas ilícitas, dada a possibilidade de manter os níveis de THC em patamares inferiores a 0,3%. Pondera a empresa que o cultivo de cannabis seria incapaz de gerar dependência, razão pela qual não estaria abrangido pela proibição.
A Anvisa continua mantendo os subprodutos THC e CBD (canabidiol) em listas de produtos autorizados sob controle especial (Portaria 344/98), além de relacionar a planta Cannabis Sativa ssp. como produto proscrito, impossibilitando o avanço das iniciativas de plantio local. É bem verdade que a própria Agência poderia autorizar o cultivo, à luz da Lei 11343/06, mas aparentemente não pretende encabeçar o tema, que divide opiniões sociais e políticas no país.
A importação de sementes para plantio e produção do cânhamo em território nacional permitiria o cultivo para extração de insumos farmacêuticos, cosméticos ou alimentícios, o que abasteceria com insumos de origem nacional as indústrias e farmácias de manipulação, para uso em saúde. O cultivo local possibilita a obtenção de alternativas terapêuticas mais amplas e variadas voltadas para os pacientes brasileiros, ampliando o leque de dosagens e proporções de substâncias obtidas planta. Além de CBD e THC, a cannabis sativa é capaz de produzir outros canabinoides como o CBG (Canabigerol), dentre as mais de 400 substâncias que pode conter.
Para além disso, a medida fortaleceria o parque industrial de farmoquímicos no Brasil, que hoje depende quase que exclusivamente de produtos importados. De acordo com informações fornecidas pela Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi), apenas 5% dos Ingredientes Farmacêuticos Ativo (IFAs) consumidos no Brasil é produzido internamente. A esmagadora maioria, representando 95%, é importada de nações como China e Índia, que detêm uma posição predominante na produção global desses insumos.
As audiências públicas são mecanismos de democratização das decisões judiciais, visando o amplo debate sobre questões de interesse social e forte relevância. Segundo o despacho são adequadas para temas com “expressiva projeção, considerando os notórios debates nos meios sociais, acadêmicos e institucionais acerca da utilização de substratos da cannabis”. A audiência pública se realizará em 25 de abril e pretende coletar manifestações de pessoas ou entidades com experiencia e conhecimento sobre a matéria.
*Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária e assuntos regulatórios, fundadora da banca DLM e responsável pelo jurídico da associação Farmacann.